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domingo, 14 de outubro de 2012

Camisa de Força





Disseram-me que a loucura era contagiosa. Alertaram-me para não contraí-la. Aconselharam-me a não cultivar certas amizades. Ensinaram-me que certas ideias eram perigosas e que tudo o que poderiam me oferecer era sofrimento e solidão.
Portanto se estou aqui hoje, do jeito que estou, a culpa é minha e de mais ninguém. Fui eu quem não quis dar ouvidos.
Fiz amizades com pessoas que eram diferentes das demais. Conheci ideias estranhas e me interessei por elas. Foi assim que pouco a pouco, as coisas foram se tornando diferentes. Sem me dar conta, sem saber bem como ou quando, fui infectado.
Por isso que estou aqui preso. Preso e impedido de me mover livremente. Preso e amarrado a essa camisa de força. Isolado do mundo, acompanhado apenas de uns poucos que como eu, são chamados de loucos.
Quando me dei conta já a estava usando. Quando percebi meus braços já estavam atados. Minha cabeça dava voltas, meus pensamentos não se fixavam e pareciam pulsar dentro de mim com tal força que o mundo pulsava junto. Meus olhos se moviam em todas as direções. Focados em pequenas partes, buscavam detalhes num todo que era incompreensível. Tentavam compreender o que era aquilo que me atava. Em vão tentava mover meus braços, eles doíam. Meus ombros doíam. Minhas mãos doíam. Meus dedos doíam. Queria sair, não conseguia mais ficar daquele jeito, não dava mais, não era mais possível, tudo doía, o ar me faltava, a respiração era curta e parecia me afogar. O desespero tomou conta de mim, gritei e chorei. Aos berros eu xingava e amaldiçoava o mundo, aos prantos eu pedia ajuda. Perguntava a todos por que aquilo estava acontecendo, porque eu estava preso, mas não havia resposta. As pessoas pareciam incomodadas e não sabiam o que me responder.
Ninguém me ajudava, ninguém sequer tentou me desamarrar. Alguns me olhavam com pena, outros desviavam o olhar. Havia ainda aqueles em quem eu podia reconhecer a minha dor. Estes eram os que mais se afastavam e se esforçavam para não me ver ou ouvir.
Foi olhando para estes que se afastavam de mim que pela primeira vez percebi. Eles também usavam camisas de força. Eles estavam tão presos quanto eu, tão atados quanto eu. Minha cabeça dava voltas e com olhos ainda molhados pude ver que todos à minha volta usavam camisas de força.
Todos.
Aqueles que me olhavam, aqueles que me ignoravam, os que tentaram me calar e os que me olharam com pena. Todos eles, todos nós presos a nossas camisas de força.
Eu não fui preso à minha camisa de força porque estava louco, estou louco porque percebi que estou preso a uma camisa de força. Estou louco porque percebi que todos nós estamos presos a camisas de força.
Não estou isolado porque os outros me isolaram. Estou sozinho porque não faz mais sentido estar com aqueles que vestem suas camisas sem o saber, ou querer saber.
Sim, a loucura é contagiosa. Sim, certas amizades são perigosas e conhecer certas ideias podem te fazer muito mal.
Nada disso me importa agora, para mim é muito tarde. Tudo o que me importa agora é conseguir afrouxar estas amarras e descobrir se é possível viver sem a tal camisa.




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Prisão









sexta-feira, 28 de setembro de 2012

No Confessionário




 Querer eu nunca quis não. Nunca, nunca, nunca. Juro que nunca que eu quis que isso acontecesse, mas aconteceu. Aconteceu, mas eu não quis não.
E nunca que eu quis, se bem que de vez em quando, quando eu tava bravo, mas muito bravo mesmo, aí eu queria.  Mas não era esse querer de quem quer de verdade, era um querer daqueles sem querer, não sabe? Era um querer sem força eu acho. Sem ser de verdade, sabe aquele querer que a gente tem só que de tão ruim a gente não quer mesmo. A gente só quer pra poder se aliviar. Era desse querer que eu queria.
Sabe aquele querer de quando a gente quer que a gente mesmo morra porque não agüenta mais viver? Por que não agüenta mais trabalhar, porque não agüenta mais ônibus lotado, porque não agüenta mais barulho de vizinho, porque não agüenta mais ficar tão sozinho.  Então era esse querer. É querer, mas não é bem querer, porque a gente não quer de verdade. A gente só quer pra poder esquecer de tudo um pouco.
Foi só assim que eu quis, mas querer assim não é querer mesmo, não é?
O caso todo foi que ontem eu quis de novo. Mas foi aquele querer sem querer, desse que falei sabe? Pelo menos eu achei que era.
Foi de noite quando eu voltei pra casa, tava tarde e ela começou a falar umas coisas que eu nem entendi direito. Eu tava meio bêbado. Então, eu gritei um monte de coisa e ela gritou um monte de coisa de volta.
Foi quando eu vi um monte de mão em cima de mim. Até aí eu acho que era ela quem queria. Queria pelo menos me machucar senão não tinha batido tanto, não é? É isso mesmo, até ali era ela quem queria. Mas eu não, eu não queria, só queria era alívio, só queria que ela não tivesse ali e muito menos me batendo. Mas ela tava e tava batendo com toda força.
Se machucou? Machucou não, já viu homem se machucar com tapa de mulher? Eu nunca vi não.
Mas também não era por isso que eu podia deixar ela me bater à vontade, não é? Podia não, então dei uma. Só pra ver se ela se acalmava, mas jacaré acalmou? Pois ela também não. Ela se levantou e veio pra cima de novo. Aí eu também quis, era só o que eu queria, mas era aquele querer sem querer sabe? Pelo menos eu achei que era.
Foi depois que eu bati um pouco nela que eu agarrei o pescoço. Aí eu queria, queria mais que ela, queria mais que qualquer outra coisa.
Aí eu apertei o pescoço dela e fiquei olhando ela me olhando, com aqueles olhos arregalados, bem abertos mesmo. Desesperados. E as mãos dela tentando me alcançar, me arranhando e tentando tirar minha mão do pescoço. E ela puxava e se mexia e se batia e me batia cada vez mais forte, cada vez mais rápido.
Até que ela começou a fraquejar e devagarinho foi deitando. E deitando. Os braços foram baixando, a mão afrouxando do meu braço e o olho dela foi ficando vazio e depois mais vazio, até que deu pra ver que não tinha mais ninguém lá, mas eles não fecharam não. Ficaram lá abertos e vazios como se fosse uma estátua olhando pro nada. 
Foi só aí que eu percebi que mesmo querendo sem querer eu fiz. Mesmo sem querer porque nunca que eu quis não senhor. Nunca, nunca mesmo que eu quis isso. Nunca quis isso de verdade, mas mesmo assim aconteceu, mas nunca que eu quis. Foi tudo sem querer.
Então me responda o senhor agora. Quando é sem querer assim, Deus perdoa?




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Herói suburbano






Sobre Flores



segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Grito



Edvard Munch, "The Scream" ("O Grito") 1893

Vontade de gritar.

Então eu grito. Um grito mudo, que nasce das profundezas de minha alma, cresce e vibra em meu peito. Como se estivesse em frente a um espelho, posso ver meu próprio rosto desfigurado, olhos furiosos, dentes à mostra, fúria, ira, revolta, dor e inconformismo.

Mas ele não sai. Ele acontece apenas em minha imaginação e persiste então dentro de meu peito. Dói em minha cabeça, não me deixa dormir à noite ou me concentrar naquilo que estou lendo, assistindo ou fazendo.

Ele permanece no meu mau humor, na minha raiva crescente, nas minhas palavras ríspidas, na vontade que alguém me dê uma desculpa para começar uma briga, qualquer motivo, qualquer pessoa.

As dores aumentam, as coisas a fazer se acumulam, o grito não sai e o mundo continua o mesmo. A vida continua a frustrar, os sonhos continuam sem se realizar, perde-se o contato com quem se ama e ainda assim o grito não sai.

Nada demais, está tudo bem. Não é sempre assim? Acho que é assim que deve ser.

Isso não é doença. Ou é? Será que pode ser? O que um grito não dado pode me fazer? É só um grito, uma vontade que vem e passa.

Este grito pode ser o que falta para me rebelar, para finalmente tomar uma ação e consertar o que não está certo. É quem me acorrenta onde estou e não me deixa mover um pé na direção que desejo.

O grito aprisionado, o choro engolido, a risada disfarçada, o gozo contido.

Tudo proibido, tudo muito feio e errado. Tudo mal e vil, tudo pecado e mau visto.

Pro inferno com tudo! Pro inferno com aquilo que “pode”, mas que ainda assim “deve” ser!

Eu grito e dessa vez meus olhos não vêem meu rosto, mas meus ouvidos ouvem o meu brado de liberdade, meus olhos tão secos, choram e lavam minha alma e assim posso ver novamente. É dia mais uma vez e agora posso ver. Meu riso é solto e verdadeiro. Meu gozo expressão de meu corpo.

O mundo à minha volta explode e dos cacos recomeço tudo outra vez. Esperando desta vez não cair nas mesmas armadilhas. Esperando não ter que esperar tanto para agir. Esperando e tendo esperança...

O que mais me resta?



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sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Prisão



Olho para estas grades à minha frente e não as compreendo. Elas já estavam aí antes? Não, isso não é possível. Ou é? Será que sempre existiram e eu nunca as havia visto? E como não as via? Porque não as via?

Em todas as direções elas me cercam. Me impedem e limitam minha vontade de ir. Ir onde quer que eu queira. Ir em direção a mim mesmo, ir em direção a tudo o que eu posso e o que desejo.

Elas me isolam e impedem que eu faça contato com os outros. Agora vejo que não consigo verdadeiramente alcançar ninguém. Tudo o que toco são grades. Tudo o que vejo, é a partir de minha própria prisão. Tudo o que sou, sou dentro deste meu mundo particular. Sou um para mim, para quem está do lado de fora sou outro. Sou uma caricatura do que deveria ser, um arremedo do que poderia ser.

E a quem culpar? De quem é a responsabilidade por tudo isso? Não é outra senão minha mesmo. Ninguém mais poderia construir prisão tão perfeita e tão invisível para meus olhos do que eu mesmo. Ninguém pode me censurar, limitar, enganar e desviar minha atenção melhor do que eu mesmo.

Agora vejo que não há mais ninguém aqui comigo, tudo é meu, tudo sou eu. Os outros são apenas pretextos, desculpas e justificativas para que essas grades se tornassem mais sólidas, mais invisíveis e me isolassem cada vez mais. Tornando-me prisioneiro de mim mesmo, carcereiro cruel de um prisioneiro submisso. Feliz por estar preso, sentindo-se seguro apesar de entristecido, sentindo-se resignado apesar de não satisfeito com o que é, com vontade de fugir, mas sem saber para onde ir ou em que direção correr.

Sento-me no fundo de minha cela e observo como as coisas funcionam. Sinto estranheza ao ver como sou diferente de mim mesmo, como essas grades fazem com o que se passa aqui do lado de dentro seja diferente do lado de fora. De como muitas coisas não chegam sequer a sair. De como eu mesmo não sairei daqui.

O carcereiro me olha, sabe que eu agora o vejo. Sou eu, mas diferente. Olho-o nos olhos e sei que meu trabalho agora é convencê-lo a abrir esta porta e convencer a mim mesmo que sou eu que tenho a chave.




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terça-feira, 3 de novembro de 2009

Sobre Flores


O lírio é uma flor. E como toda flor, um dia o lírio foi semente. E a semente um dia foi trazida pelo vento, ou por uma abelha, ou por alguma outra força da natureza até onde ele está hoje. Então, o lírio teve que encontrar solo fértil e seguro, livre de predadores naturais, para poder crescer, se desenvolver e aí sim, deixar de ser semente e como todos os outros se tornar um lírio.

Um lírio. Algo que todos podem ver, cheirar e se admirar perante sua beleza e força. Um lírio que a gente se admira de existir assim tão belo e perfumado. Um lírio que apesar de todas as adversidades do vento, do Sol, da chuva forte, da seca, dos animais que poderiam destruí-lo, apesar de tudo isso e muito mais, está aí para quem quiser ver.

O lírio é uma flor e uma flor é sempre bela.

Rosa não é uma flor, Rosa é gente. Rosa não é como o lírio, Rosa não cresceu pra se mostrar pra toda gente. Rosa é medrosa e por isso não cresce. Rosa acha que se crescer não pode mais ser gente, acha que ser feliz é ser inocente. Rosa acha que ser feliz é deixar que os outros cuidem dela. Rosa está mais pra semente.

O lírio encontrou solo fértil para crescer. Rosa não, só o que encontrou foi solidão. Não teve amor porque Rosa não é flor, Rosa é gente e de gente ninguém se admira.

Rosa não é mais criança não. Rosa que já foi Rosinha cresceu, mas foi só no tamanho. Porque ela ainda acha que o bom mesmo é brincar de casinha. Fazer comidinha e cuidar de suas bonecas. Rosa só quer alguém com quem brincar.

O lírio pode viver só no meio da montanha, Rosa não. Rosa vive no meio de um mundo de gente só que ninguém olha pra Rosa não. Porque Rosa não é bonita e também não cheira como lírio. Rosa cheira gente e gente não é flor, gente é gente.
Rosa não cresce porque Rosa tem medo, mas também não pode voltar a ser Rosinha. O lírio não tem querer, o lírio só é. E o lírio é flor e toda flor nasce, cresce, procria e morre, porque flor não tem querer, flor é, e pronto.

Mas Rosa é gente e gente só é o que quer ser. E Rosa? Ah Rosa não quer crescer.
Rosa poderia ser pintora, Rosa poderia ser atriz, Rosa poderia ser aquilo que ela sempre quis. Mas Rosa não quer arriscar, acha que só vai se machucar. E então continua a mesma. Sem graça, sem cheiro, sem cor, sem nada pra gente se admirar.

Acha que tudo isso é sonho e sonho a gente sonha, não vive. Viver ela vive. Vive sonhando que tudo vai melhorar um dia e que nesse dia tudo vai ficar claro. Tão cristalino quanto a água. E então ela vai ser alguém, e não vai mais ter medo. Ela vai ser admirada como uma flor e todos vão querer estar perto dela.

Rosa um dia vai morrer, mesmo não sendo flor, porque gente também morre. Mas quem sabe antes de morrer Rosa possa criar coragem e ver que crescer é natural e que como a flor que um dia foi semente, ela também pode ser perfumada e cheia de cor. Porque

Rosa é gente e gente não é flor.

Gente é melhor que flor. Porque gente pode escolher o que quer ser, não só é. Rosa só precisa escolher, precisa encontrar solo fértil, precisa encarar os medos, porque Rosa não é flor. Rosa é gente e gente quando cresce além de ser admirada pela força, pela beleza e pelo perfume, gente brilha e todos se admiram.

Gente quando cresce, vira é estrela.




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